Ana Mae Barbosa: a Arte pode beneficiar até a Alfabetização na escola.

Pesquisas mostram que o trabalho com Arte ajuda as crianças a diferenciar o formato das letras e a relacionar textos de temas diferentes. Ana Mae Barbosa está à frente de algumas delas


A professora de Arte Ana Mae Barbosa durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro.

A professora Ana Mae Barbosa é um dos maiores nomes em ensino de Arte no Brasil. Formada em um período em que a Academia não voltava os olhos para o tema, abriu caminho por conta própria, embarcando em bolsas do marido para estudar mestrado e doutorado na área das Artes Visuais nos Estados Unidos. Voltou e começou a ter seus primeiros alunos, que, por sua vez, levavam o interesse pelo tema para suas universidades.

A professora não vive dias muito otimistas. “Eu não tenho mais a oferecer além do que já ofereci”, costuma dizer a amigos. Mas, em meia hora de conversa, revela que ainda tem planos de fazer pelo menos mais dois projetos de pesquisa. “Pesquisas curtas, porque eu não tenho muito tempo”.

No Brasil, preocupa-se com a integração da Arte a outras disciplinas de Linguagens no currículo do Ensino Médio. “Quando eu vejo o discurso da interdisciplinaridade, isso não deve ser restaurante de prato feito, em que se entrega para o cliente um pouco de arroz, um feijão aqui e uma carne lá. A interdisciplinaridade é feita entre especialistas das áreas, que se organizam em projetos. O que vai acontecer é a Arte ficar no fim de uma aula de Geografia, que certamente vão mandar desenhar mapa, o que já é uma obviedade terrível. Uma aula de História, e certamente vão mostrar algumas imagens históricas, e isso não é interdisciplinaridade, isso é apenas um instrumento para melhorar e ativar a aprendizagem. É diferente de aprender verticalmente a Arte”, argumentou a professores no dia 2 de setembro, no auditório do Fórum de Educação, que fez parte da programação da Bienal do Livro do Rio de Janeiro entre 2 e 3 de setembro.

O que cabe aos professores de Arte fazer diante dessa realidade? “Se preparar para colaborar com os outros professores, seja lá como for, e lutar para conseguir um momento, o nosso espaço, para trabalhar com as crianças verticalmente”.

Em sua fala, Ana Mae fez um levantamento histórico de nomes e momentos que foram importantes para a história do ensino da Arte no Brasil, e lembrou que há pesquisas que já indicam uma forte relação entre aprendizagem de arte (que Ana Mae prefere chamar de “contato com arte”) e desenvolvimento de raciocínio em outras áreas. “Na alfabetização, a criança confunde as palavras lata e bola. Por que? Porque ela se apropria de configurações: a palavra bola tem uma letra alta, uma baixa, uma alta e uma baixa, a palavra lata também. Então elas se equivalem. A criança que trabalha com arte, desenha, trabalha com pintura, rapidamente percebe a diferença, que é o risco na letra T. Se nós temos problemas de alfabetização na escola, por que não usar artes visuais, que é especificamente dirigida para a percepção visual, para a discriminação?”, provoca.

E vai além: um pesquisador da Califórnia “que se especializou em pesquisar pesquisas, é um metapesquisador” encontrou estudos que mostram que o desenvolvimento intelectual na Arte é transferível para outras disciplinas. Uma delas mostrou que a prática do desenho desenvolve a capacidade nas pessoas de relacionar 3 textos de diferentes temas. “Isso é uma coisa fantástica, pode ser explorada em qualquer área”, comemora Ana Mae.

Depois da palestra, Ana Mae deu uma entrevista exclusiva à Nova Escola, entre autógrafos e fotos com professores. Confira abaixo:

Nova Escola: Como conciliar o trabalho com o potencial criativo dos alunos, a liberdade de criação, com o currículo da escola, que em geral tem avaliações e cobranças?

Ana Mae Barbosa: A arte-educação mudou muito. Essa visão que você menciona, de só pensar na expressão do aluno, é aquela que a gente chama de ensino expressionista, que está ligado ao Modernismo. Eu acho que é muito importante fazer a criança e o adolescente conseguirem expressar em uma linguagem presentacional aquilo que ele não pode dizer na linguagem discursiva, que é essa que eu estou falando com você agora, ou na linguagem científica. O ser humano se comunica por 3 linguagens: a presentacional, a científica e a discursiva. É preciso que ele se desenvolva através das 3. Ele pode ter um potencial fantástico em linguagem discursiva, e não ter nas outras. Essa linguagem de arte não se traduz em outra linguagem, você pode criar equivalentes. Quando a crítica fala da Arte, ela está criando em linguagem discursiva um equivalente à linguagem presentacional, mas tradução, não tem.

Aí vem o pós-modernismo, com uma outra visão. Nós temos que desenvolver a capacidade do aluno se expressar, mas temos também que alimentá-lo. A ideia anterior era “a arte é uma coisa que sai de dentro”, é o “mínimo denominador comum” do expressionismo. Mas a gente tem que se alimentar de arte. Expor o aluno à linguagem presentacional, à fotografia, à pintura, ao desenho, ao cinema, porque cinema também é arte visual, e fazê-los pensar. Por que eu acho que isso é melhor do que aquilo? Já estou integrando a linguagem discursiva no próprio conhecimento de arte. E criando também uma bibliografia do olhar, juntando várias visões de arte, vários processos artísticos. Meu livro “A Abordagem Triangular” supõe que, para o ensino das Artes Visuais, você tem que fazer, ler a obra de arte ou a imagem, interpretar criticamente até, e contextualizar o que você faz e o que você vê. Aí essa contextualização é uma porta aberta para as outras disciplinas.

Há poucos dias eu dei uma aula mostrando um trabalho sobre Ecologia junto com artistas que fizemos em 1992, durante a Rio 92. A contextualização foi Botânica. Com botânicos no Parque do Ibirapuera, conversamos sobre plantas, sobre árvores. Aprenderam que cada planta é cuidada de um jeito. Para depois subir no museu e ter uma artista com uma árvore enorme, só com os galhos desenhados em acetato transparente, presa na parede do museu, e os meninos iam produzir as folhas da árvore, e ele colocava a folha da árvore em papel autocolante. Depois disso eles iam ver uma instalação de cafezal em diversos momentos da sua maturação. Aí, eles passavam do figurativo para o abstrato, e aí depois tinha uma outra parte vinculada ao museu, de olhar as obras livremente, escolher uma pra ser discutida com o educador em grupos pequenos. Tem vários passos, mas a gente tinha a ciência ali, iniciando, e eles tinham a experiência com o mundo fenomênico da arte, depois o mundo como representação figurativa, e depois o mundo da árvore representado nos tratamentos. Eles descobriram assim que a abstração não é “jogamento de tinta”, é pensamento também, pensamento visual.

Essa nova maneira de ensinar Arte surge mais ou menos em 92. Teve um impacto enorme. O professor de Arte era desconsiderado, diziam que ele não prepara aula, aí o professor de Arte começou a ser respeitado na escola, porque ele tinha que preparar aula como todos os outros. Para o professor, foi um ganho.

Você disse que a Arte está perdendo espaço por causa dessa junção com as outras disciplinas no Ensino Médio. Por que?

Há muito perigo, porque a Educação está sendo dominada por economistas. Outros governos também fizeram isso. É submeter a Educação à Economia. Vem sendo uma característica não só do Brasil, mas do Capitalismo em geral. Mas agora a coisa está pior, porque já está decretado.

A Arte é uma forma de compensação pela repressão que a gente tem que exercer nos adolescentes, é importantíssima do ponto de vista do raciocínio. Olha, veja a dificuldade que é, no desenho de observação, você passar duas dimensões para três dimensões, é um processo difícil do ponto de vista intelectual, da inteligência.

As pesquisas mostram que a arte influi inclusive nos processos mentais que são medidos pelo teste de QI, que pede principalmente raciocínio. Até nesses testes já está se provando que um aluno que trabalha com Arte pontua melhor. Como é que você vai largar? Eu nem falo do emocional, porque falar para um burocrata da Educação sobre o emocional não vai ter efeito, então eu falo dessas pesquisas concretas que provam que há transferência de aprendizagem, processos mentais da Arte para as outras áreas, tudo isso mostra que a Arte tem um papel importante.

Nos Estados Unidos foi a mesma coisa. No fim da década de 1950, quando o Sputnik é lançado, há uma ênfase imensa em arte, as ainda modernistas, a ideia do expressionismo. E chega a década de 1970, toda uma geração criada com muita arte nos Estados Unidos vai enfrentar o que? A guerra do Vietnã. E eles conseguiram se posicionar contra, foi lindo, eu vivi lá esse momento em 1971, estava fazendo meu mestrado de Yale, gente rica, gente poderosa, gente bem formada fazendo performances contra a guerra do Vietnã dentro da Universidade.

Então eles disseram “Oh, ok. As pessoas que a gente formou assim, pensando em criatividade, estão fazendo isso contra a gente” e começaram a cortar. Eu não sei por que estão fazendo isso hoje. Nos Estados Unidos é claro que eles começaram a cortar arte depois do movimento dos jovens contra a guerra do Vietnã.

Você falou no auditório sobre as crianças que desenvolvem a criatividade desde cedo e têm facilidade de identificar a diferença das letras. É um benefício visível da arte para a alfabetização, e vai na contramão da crença de que se deve incentivar Português e Matemática para que as pessoas aprendam a ler, escrever e fazer contas. Pelo visto não é bem assim...

Não, claro que não. Eu acho até mais séria a pesquisa que foi feita nos Estados Unidos, que quem trabalha com desenho é capaz de relacionar 3 textos de temas completamente diferentes. Isso prova que desenvolve a capacidade de ler, de observar, raciocinar.

Por que você prefere se referir a Arte na escola como “contato” com arte em vez de “aprendizagem” de arte?

Isso é um pensamento que eu ainda estou desenvolvendo, porque eu sempre briguei muito com essa história de dizer “a arte não se ensina”, que vem da Bauhaus. Aí eu dizia “se a arte não se ensina, se aprende”. Agora eu já acho que não sei se vai mais além, se contamina com a arte. É diferente, uma pessoa contaminada pela arte, ela age, ela busca por ela própria mais arte, e se alimenta sempre de arte. Agora, como eu vou colocar isso teoricamente, sem pesquisa, eu não sei.

Eu tenho poucos anos na minha frente agora, eu ainda tenho pelo menos dois temas de pesquisa que eu quero desenvolver. Um deles é o problema da criatividade modernista e da criatividade pós-moderna. A criatividade modernista enfatizou a produção de múltiplas respostas, que é a fluência e a originalidade, sabendo que existia outros processos. Mas a criatividade pós-moderna enfatiza principalmente a flexibilidade, a mudança de categoria.

Existe até um teste de flexibilidade: uma página com 16 círculos e você tem que completar objetos. A pessoa fluente vai, por exemplo, fazer assim: panela, boca de fogão, ovo. São redondos da mesma categoria. Uma pessoa flexível vai fazer ovo, botão e roda de bicicleta, por exemplo. Muda completamente de categoria. Agora o equilíbrio entre essas duas é que torna o indivíduo mais criativo ou não.

Esses mundos, o moderno e o pós-moderno, se ligam pela flexibilidade e fluência, mas um está pensando em originalidade, e o pós-modernismo já não pensa mais em originalidade. Pensa em adequação, e aí destaca a elaboração, porque a elaboração vai fazer com que você, pela necessidade, vá mudando a função de um objeto ou o próprio objeto. Só que eu não sei ainda como fazer isso para provar o que eu estou dizendo.

E a afetividade, você acha que tem espaço para ser trabalhada na arte-educação? A disciplina da Arte tem esse potencial?

Para mim, todas as disciplinas têm esse potencial. Mas a cultura brasileira vem dando à Arte essa tarefa, e a gente tem que assumir e realmente fazer isso.

Por que você diz que a cultura brasileira vem entregando essa tarefa para a Arte?

Porque não se preocupa em desenvolvimento de criatividade nas outras áreas. Quando fala de criatividade, “Ah, isso é Arte. Isso aí a Arte faz”. Agora acho que nem mais isso querem, né, porque se estão tirando a Arte, não sei como vai ser essa lavagem cerebral da cultura brasileira, porque o sistema escolar sempre pensou isso. Se estamos desenvolvendo criatividade na Arte, pronto, agora Matemática, Inglês, a gente pode ser um pouco decoreba, sabe? Quando nada deveria ser decoreba.

Nesses 63 anos de trabalho, você já viu muitos momentos em que a Arte foi subjugada?

Sim, muitos. A primeira ameaça de tirar a Arte do currículo foi em 1996. Foi crucial, terrível. Dividimos todos os professores para cada um azucrinar um senador ou deputado, sabe? Hoje eu não tenho mais energia pra ir e trabalhar assim.

Mas você acha que dá pra gente ter esperança?

Eu não sei se tenho esperança, não. Eu também deixei de ser otimista totalmente, entendeu? Eu tô muito apreensiva, é a palavra que posso usar. Porque nós somos, hoje, o país que tem a melhor arte-educação na América Latina. Os outros países estão começando. Estão indo muito bem. Eu não ia há 5 anos ao México, fiquei espantada com o avanço nesses 5 anos. Entretanto nós vamos perder a liderança. Por causa de quê? Por causa de mestrados e doutorados, das pesquisas.

Tem um programa do Ministério da Educação (MEC) chamado mestrado profissional, que recebe, em Artes, só o professor que está em sala de aula e quer desenvolver um projeto que seja voltado para o chão da escola. A gente viu que tínhamos excelentes mestrados e doutorados, mas raramente algum chegava a modificar o chão da escola. E aí criou-se esse mestrado, com o professor que tinha que estar em sala de aula. Ele diminuía a carga horária, e recebia uma bolsa para alimentação e transporte, porque essas coisas aumentam quando você está estudando. Em São Paulo só teve duas turmas formadas. Agora está começando a terceira sem bolsa, com três bolsas apenas. Isso pra mim é sem bolsa. Então, isso já é uma decadência.

Fonte: Nova Escola

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